Às vésperas da data limite para a votação da Reforma da Previdência – antes do início do calendário eleitoral – e diante da dificuldade do governo de articular apoio da base aliada no Congresso, a chance de aprovação neste ano da proposta de mudança no sistema de aposentadorias é cada vez mais remota.
Parte dos economistas avalia o desfecho como mais uma “herança maldita” que a atual gestão deixará para o próximo presidente.
A reforma praticamente não teria impacto fiscal positivo no curto prazo – ou seja, ela não faria muita diferença, em um primeiro momento, para aliviar o rombo orçamentário -, mas seria um sinal importante de reversão na trajetória de desequilíbrio que as contas públicas vêm mostrando desde 2014, diz Zeina Latif, economista-chefe da XP Investimentos.
Outros especialistas afirmam, contudo, que o aparente descontrole das finanças públicas é, na verdade, um desdobramento da recessão – que teria feito a arrecadação de impostos despencar nos últimos anos, junto com o nível de atividade.
“O problema é a queda da receita, não o aumento da despesa”, diz Amir Khair, consultor na área fiscal e contrário a uma Reforma da Previdência neste momento. Para ele, a recuperação da economia neste e nos próximos anos vai reequilibrar a contabilidade do governo e permitir que o Estado financie a seguridade social.
Independentemente do diagnóstico, sem mudança no regime do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e nas aposentadorias de servidores, que respondem por quase 45% das despesas da União, o governo terá dificuldade para cumprir o teto de gastos.
Aprovada em dezembro de 2016, a emenda do teto mudou a Constituição e criou uma amarra para as despesas, que só podem crescer o equivalente à variação da inflação pelo menos pelos próximos 20 anos.
Em 2018, por exemplo, elas só podem chegar a R$ 1,348 trilhão: o total do ano passado, mais a inflação acumulada nos 12 meses de julho de 2016 a junho de 2017. Isso quer dizer que, ainda que entre mais dinheiro em caixa que o previsto, ele não pode ser gasto acima daquele limite.
Encontro marcado
Diante da elevação contínua dos gastos públicos, o Instituto Fiscal Independente (IFI) calcula que o teto estouraria já em 2019 ou 2020. “A gente tem uma data marcada para ter essa discussão (da Previdência)”, conclui Gabriel Leal de Barros, economista da instituição, ligada ao Senado.
A grande maioria das despesas obrigatórias da União são corrigidas anualmente – elas crescem no ritmo do aumento da inflação ou, no caso dos salários de servidores, por exemplo, quando são negociados reajustes.
A “data marcada” a que o economista do IFI se refere é o momento em que o teto for descumprido e que forem acionados os “gatilhos” previstos na lei, que praticamente congelam a estrutura da máquina pública: fica suspensa a concessão de qualquer reajuste a servidores, novas contratações, criação de cargos, realização de concurso público, majoração de benefícios e auxílios.
“Os gatilhos são eficazes (para estancar o avanço da despesa), mas podem gerar instabilidade política”, avalia Vilma da Conceição Pinto, pesquisadora do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre-FGV).
Mas o impasse com o teto de gastos vai além da Previdência, ressaltam os economistas.
“Mesmo com a versão mais dura (da reforma), ainda seria difícil de cumprir”, diz Barros, já que o impacto positivo de uma eventual mudança seria gradativo.
Em algum momento, o governo vai precisar revisar as demais rubricas, como salários, subsídios e outros benefícios, acrescenta Pinto. “Essa pode ser uma oportunidade para se avaliar melhor o custo-benefício das políticas, para decidir o que vale ou não a pena manter”, diz a economista do Ibre.
Como o pagamento de aposentadorias e pensões é a principal despesa do governo, entretanto, chegando a quase metade do total, sua reestruturação é incontornável, avalia Barros.
“Se ela não for feita, as despesas obrigatórias vão empurrar todas as outras”, afirma, referindo-se aos chamados gastos discricionários, que são aqueles que o governo tem liberdade para cortar ou alocar onde quiser.
Atualmente, cerca de 10% dos gastos entram nessa categoria – que inclui, por exemplo, os investimentos. O restante são gastos “com carimbo”, para onde o dinheiro da arrecadação tem destino certo.
A atual proposta de mudança no regime previdenciário prevê estabelecer uma idade mínima para se aposentar (65 anos para homens e 62 para mulheres) e um tempo mínimo de contribuição para ter direito ao benefício (15 anos para trabalhadores da iniciativa e 25 para os funcionários públicos).
Além disso, quem se aposentasse com esse tempo mínimo receberia 60% da média salarial – 70% no caso dos servidores. O teto seria alcançado apenas caso se chegasse aos 40 anos de contribuição.
O refresco de 2018
Neste ano, além da folga maior do teto, o governo terá ajuda de dois fatores: a devolução de cerca de R$ 130 bilhões do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) ao Tesouro – que vai reduzir a dívida bruta, em trajetória crescente desde 2014 – e a perspectiva de crescimento da arrecadação, beneficiada pela retomada cíclica da economia.
O aumento das receitas com impostos, para o economista Amir Khair, vai colocar as finanças públicas de volta ao eixo se acompanhada de políticas de estímulo ao crescimento econômico e de redução estrutural dos juros – já que o país paga o equivalente a 5% ou 6% do PIB em juros por ano, R$ 400 bilhões só em 2017.
A Reforma da Previdência, para ele, não é necessária, ainda que o sistema não se financie apenas com receitas próprias. Em sua avaliação, em um país como o Brasil, em que a informalidade é alta e “muita gente é posta para fora do mercado de trabalho precocemente”, a Previdência é “o grande programa de proteção social”.
Em 2017, as despesas do INSS superaram as receitas em R$ 182,5 bilhões. No regime dos servidores da União, o deficit foi de R$ 86,4 bilhões.
As aposentadorias e pensões, ele afirma, são parte da seguridade social – que, pela Constituição, são parcialmente financiadas pelo Estado. “A Previdência tem deficit sim, mas a crítica (daqueles que negam que ela seja deficitária) em parte tem razão porque a gestão é muito ruim”, completa.
Benefício da dúvida
Se Temer ainda tenta se articular no Congresso e conta os votos na esperança de pautar a reforma na Câmara, o mercado já há algum tempo não acredita que ela será votada neste ano.
Para Latif, da XP Investimentos, esse é o cenário que está “precificado” – ou seja, a provável derrota do governo não mexeria de forma significativa com o dólar e com a trajetória do chamado risco país.
“Os mercados estão dando o benefício da dúvida porque acreditam que o próximo governo vai dar sequência às reformas”, comenta.
O rebaixamento da nota de crédito do Brasil pela agência Standard & Poor’s em 11 de janeiro, para Monica Baumgarten de Bolle, professora da Peterson Institute for International Economics, também já tinha isso na conta.
“A S&P se adiantou, as outras agências estão atrasadas, só esperando bater o martelo da Previdência”, avalia. “A reforma já tinha sido completamente diluída, não ia resolver nada. Melhor que seja toda ela feita de uma vez.”
‘Herança maldita’
Ainda que o próximo presidente levante a bandeira da Previdência, contudo, passar uma reforma mais para frente tampouco será fácil.
De um lado, pondera De Bolle, o governo vai assumir diante de um Congresso bastante fragmentado – tendência que vem se intensificando nos últimos 20 anos -, pouco disposto a aprovar reformas e ajustes.
“Além disso, vai entrar com uma herança maldita do lado fiscal, já que o governo passou o teto e gastou os tubos para se salvar na Câmara das denúncias. É um nó górdio total.”
O grau de exigência do mercado no início do próximo governo também será maior, acrescenta Latif, e ele deve ser menos condescendente do que tem sido com Temer. “Não vai ter lua de mel”, ela diz.
Fonte: bbc.com/portuguese