O motorista toca levemente a buzina e María José Pacheco estende o braço para mostrar sete laranjas.
Sentada sob uma pequena árvore ao lado de um semáforo, ela descasca as frutas com rapidez e perfeição e as coloca em um saco de fina malha de plástico.
A mulher venezuelana deixou seu país, seus três filhos pequenos e seu emprego de professora para vender laranjas 12 horas por dia. E ainda assim, não se arrepende.
“Aqui você consegue comida, você trabalha, e o dinheiro rende”, diz María José, uma entre milhares de venezuelanos que, nos últimos meses, cruzaram a fronteira com o Brasil para escapar da crise em seu país e tentar a sorte em Boa Vista.
A capital do Estado de Roraima, com menos de 300 mil habitantes, teve sua tranquilidade abalada.
A chegada de estrangeiros provocou reclamações entre a população local e sobrecarregou os serviços de saúde, levando a governadora, Suely Campos, a decretar, em dezembro passado, um estado de emergência – que ainda está em vigor.
O traçado urbanístico de Boa Vista lembra o do centro de Paris, com uma praça central para a qual convergem, em leque, longas e largas avenidas, como na região apelidada de Étoile (Estrela) da capital francesa.
Apesar da semelhança com Paris não ir além do traçado das ruas, para muitos venezuelanos Boa Vista é um sonho.
Em alguns cruzamentos de suas artérias planejadas, você pode vê-los, sob o sol forte e constante.
María José trabalha em um dos cruzamentos da avenida Venezuela. Ao lado dela está seu irmão. Em outro ponto da cidade, seu marido. Os três dividem um quarto, no qual não podem cozinhar, o que gera mais despesas. Ainda assim, eles conseguem economizar e mandar dinheiro para o restante da família que ficou na Venezuela.
Em uma semana, María José chega a ganhar o mesmo que recebia em um mês de trabalho como professora em seu país.
Além disso, ela encontra em Boa Vista comida a preços mais baixos do que em sua cidade natal, devido à acentuada crise econômica no país vizinho, que gera escassez de alimentos básicos e inflação alta.
Por isso, milhares de venezuelanos emigraram nos últimos anos, para países como Colômbia, Panamá, Brasil, Espanha ou Estados Unidos.
Muitos também mencionaram a incerteza em relação ao futuro como a causa que os fez decidir deixar o país.
‘Qualquer lugar é melhor que a Venezuela’
A espaçosa Boa Vista, onde quase não existem edifícios altos, é a primeira cidade grande que você encontra depois de cruzar a fronteira entre Venezuela e Brasil, a cerca de 200 quilômetros.
Na sexta-feira, dia 24 de fevereiro, a reportagem teve que esperar na fronteira por até sete horas para receber a aprovação dos dois únicos agentes da polícia federal brasileira que atendiam centenas de pessoas. Havia brasileiros, alguns turistas, mas, acima de tudo, venezuelanos.
Yosleidis esperava calmamente com sua sogra. “Qualquer lugar é melhor do que a Venezuela”, afirma ela.
A razão de tanta certeza é que seu marido está há seis meses em Boa Vista, onde encontrou trabalho em um fast food venezuelano.
Ela está indo visitá-lo. Yosleidis diz que todos da família se mudarão para o Brasil assim que terminar o ano escolar das crianças, em julho.
Ao seu lado, Julia, de 19 anos, carregava uma mala volumosa.
Ela agora está indo definitivamente para Boa Vista, onde sua mãe passou vários meses com seu irmão de 6 anos.
“Ele já fala português fluentemente”, diz ela, orgulhosa do pequeno que domina a nova língua que a espera.
Julia faz contas. No momento, ela suspendeu seus estudos na Venezuela. Ela quer trabalhar e acredita que pode ganhar R$ 400 por mês – que, no câmbio informal da fronteira equivalem a cerca de 480 mil bolívares, muito mais que os 40 mil (mais o vale-refeição) do salário mínimo mensal em seu país.
Tanto o marido de Yosleidis como a mãe de Julia pediram refúgio no Brasil e conseguiram. Agora, elas esperam conseguir o mesmo.
É a melhor maneira de obter residência legal no país vizinho; os venezuelanos que entram com visto de turista podem permanecer no país por apenas 90 dias.
O governo de Roraima estima em 30 mil o número de venezuelanos que vivem no Estado.
Segundo os dados da Polícia Federal fornecidos à BBC, 2.238 venezuelanos pediram refúgio em 2016. Somente cinco casos foram negados.
Emergência
O fluxo venezuelano tem gerado alguns problemas na tranquila Boa Vista.
Em dezembro de 2016, a governadora, Suely Campos, declarou estado de emergência de saúde pública por 180 dias “devido ao intenso e constante fluxo migratório”.
A medida tinha o objetivo de chamar a atenção para o problema e pedir ajuda ao governo federal em Brasília.
O Hospital Geral de Roraima, em Boa Vista, é talvez o melhor indicador da sobrecarga do sistema causada pela chegada maciça de venezuelanos.
Em 2014, o hospital atendeu 324 venezuelanos. Em 2016, foram 1.240. Dos 2.517 casos de malária detectados no Estado em 2016, 1.947 se originaram no país vizinho, de acordo com dados do governo.
“Tem havido um aumento desproporcional dos venezuelanos e isso tem um grande impacto em um país com limitações”, diz Douglas Teixeira, diretor do departamento de emergência do Hospital Geral.
O hospital diz que sofre as consequências da chegada não apenas dos venezuelanos que se instalaram na cidade, mas também dos que são forçados a buscar atendimento em Boa Vista devido à precariedade dos hospitais próximos da fronteira.
“Nós tratamos todos os pacientes de graça e sem distinção”, diz o doutor Teixeira.
E um dos beneficiados é a família de Alexis Diaz, vestido com a camiseta de um time de futebol venezuelano e sentado ao lado de uma cama ocupada há uma semana pelo seu sobrinho, que quebrou o fêmur.
A internação e a operação do adolescente representam um alto custo – coberto pelo Brasil.
“Os serviços daqui são muito melhores”, diz Diaz, em um quarto limpo com três camas, três pacientes e seus acompanhantes.
Tio e sobrinho vivem em uma comunidade indígena venezuelana perto da fronteira. O hospital mais próximo e mais bem equipado é o de Boa Vista.
“Voltar será um problema porque não temos recursos”, diz Diaz, cujo sobrinho será submetido a uma cirurgia no dia seguinte.
O conflito
A chegada em massa de imigrantes também está criando tensões em parte da população local, que os culpa por causar insegurança, um aumento da prostituição e por tirar proveito dos serviços gratuitos.
“Há pessoas que te humilham”, diz Eugenia, uma venezuelana que limpa para-brisas em semáforos.
“Eu até chorei. Mas estou batalhando pelo pão para os meus filhos”, diz ela, usando uma grossa jaqueta apesar do forte calor da cidade perto do Amazonas.
Vários moradores de Boa Vista chamaram a minha atenção para a calorosa recepção dada por muitos ao deputado federal Jair Bolsonaro em novembro do ano passado.
O político de extrema-direita pretende se candidatar à presidência do Brasil em 2018. Ele se compara a Donald Trump e defende uma política dura contra a imigração. No caso de Roraima, contra a imigração da Venezuela.
Ele se refere ao governo de Nicolás Maduro como exemplo do que pode ocorrer no Brasil com um governo de esquerda.
Mas nem todas as experiências com os boa-vistenses são negativas. Eugenia conta que todos os domingos uma senhora leva comida para ela no semáforo.
Refúgio
No fim do ano passado, o Estado de Roraima criou, em uma quadra poliesportiva abandonada distante do centro, o Centro de Referência do Imigrante (CRI), que serve como um abrigo para cerca de 200 venezuelanos – a maioria deles, índios da etnia warao.
Eles dormem e empilharam seus poucos pertences nas arquibancadas do ginásio. Do lado de fora, a terra vermelha mancha seus pés e sapatos, uns lavam roupas, as crianças correm seminuas, os adultos jogam futebol e vôlei ou balançam em redes.
“Fornecemos a eles o café da manhã, chá da tarde e jantar, além de assistência médica, aulas de português e assessoria para o mercado de trabalho”, explica o tenente do corpo de bombeiros e defesa civil Fernando Troster, chefe de um abrigo transitório, que tenta impedir que os imigrantes acampem nas ruas.
Troster espera manter o limite de 200 moradores, e que muitos doadores ajudem.
“Mas, enquanto continuar a crise na Venezuela, eles continuarão vindo”, prevê.
Entre essas 200 pessoas está Charly Gomez, um jovem que chegou com apenas uma mochila.
“A língua é difícil”, diz, enquanto coloca maquiagem para aparecer em frente a uma câmera. “Às vezes, você tem que ficar com homens e fazer coisas que não quer, por necessidade”, revela, sobre como ganha a vida.
Nenhuma dificuldade parece, no entanto, fazê-lo voltar para casa. “Nem que eu tenha que morar na rua, não vou voltar para a Venezuela, até que a situação mude”, diz ele com firmeza. “Busco segurança, trabalho, pessoas que me respeitem, comida. Aqui, pelo menos como”.
Jefferson Mejia está há apenas três semanas no abrigo e na cidade. Ele é colombiano e, depois de passar dez anos na Venezuela, se mudou para Boa Vista com sua esposa e seus três filhos venezuelanos.
“Me disseram que aqui tem emprego e vive-se bem”, diz, com a mesma esperança dos milhares de venezuelanos que estão indo para Boa Vista em busca do que não conseguem encontrar no país vizinho.
Fonte: BBC.com